Obrigações do Estado
Código de Leis
O estabelecimento de sistemas jurídicos justos constitui uma das responsabilidades fundamentais do Estado segundo a perspectiva das Sete Leis de Noaḥ. Esta obrigação deriva diretamente da lei de Sistemas de Justiça (Dinim, דינים), que exige a criação e manutenção de estruturas sociais que promovam a justiça e a ordem. Diferentemente das outras seis leis noaítas que regulam comportamentos individuais, a lei de Dinim é primariamente uma responsabilidade coletiva, implementada através de instituições estatais.
Fundamentos na Tradição Oral
A obrigação de estabelecer sistemas justos é derivada da interpretação tradicional de Bereshit 2.16, onde o Talmud (Sanhedrin 56a) interpreta este verso como fonte das Sete Leis, incluindo a obrigação de estabelecer cortes de justiça. Maimônides codifica esta obrigação no Mishnê Torá (Hilḥot Melaḥim 9.14), afirmando que os Bnei Noaḥ devem estabelecer tribunais em cada cidade para julgar as outras seis leis.
Esta responsabilidade de criar sistemas judiciais não recai apenas sobre indivíduos, mas especificamente sobre a sociedade organizada através de suas estruturas governamentais. O Talmud (Bava Kama 113a) trabalha indiretamente a ideia de legitimidade do Estado ao diferenciar entre autoridades legítimas e ilegítimas, como coletores de impostos que atuam sob autoridade governamental e coletores de impostos fora da lei. Esta distinção reconhece a legitimidade do Estado a partir do exercício justo de sua autoridade e da manutenção de sistemas que promovam a justiça, não a exploração.
Componentes Essenciais do Estado
Sistema Judiciário
O Estado tem a obrigação primária de estabelecer um sistema judiciário funcional e acessível. Um sistema judiciário adequado compreende tribunais organizados em diferentes níveis territoriais (locais, regionais e nacionais) para garantir que a justiça esteja ao alcance de todos os cidadãos, procedimentos claros, julgamentos justos e mecanismos eficazes para assegurar que suas decisões sejam devidamente executadas. Estes tribunais devem ser compostos por juízes qualificados e imparciais, capazes de interpretar e aplicar a lei com sabedoria e equidade.
O Sefer Haḥinuḥ (Mitsvá 491) enfatiza que a raiz do sistema de justiça é causar temor no povo, fazendo com que as pessoas obedeçam a lei por causa desse temor até que a justiça se torne parte da natureza pessoal.
Sistema Executivo
Além do judiciário, o Estado deve estabelecer um sistema executivo eficaz para implementar e fazer cumprir as leis. O Rambam (Maimônides) ensina em Hilḥot Sanhedrin 1.1 que a aplicação da lei devia ser feita pelos oficiais, responsáveis por patrulhar, inspecionar e executar sentenças dos juízes. Na prática contemporânea, esse sistema executivo inclui forças policiais dedicadas à manutenção da ordem pública, oficiais encarregados de executar decisões judiciais, mecanismos de proteção aos cidadãos contra violência e opressão, além de estruturas previnam crimes. A eficácia deste sistema depende tanto da sua capacidade de punir transgressões quanto da habilidade em fazer com que a lei seja respeitada.
Sistema Legislativo
O Estado também tem a responsabilidade de estabelecer um sistema para criar e codificar leis justas. Este poder legislativo deve desenvolver leis que sejam claras e compreensíveis para todos os cidadãos, evitando ambiguidades que possam levar a interpretações contraditórias. É essencial que estas leis sejam codificadas em forma escrita e acessível, permitindo que qualquer pessoa tenha conhecimento de seus direitos e deveres. À medida que a sociedade evolui, o poder legislativo deve atualizar a legislação conforme necessário, enfrentando novos desafios e respondendo às mudanças sociais. Acima de tudo, o processo legislativo deve ter como princípio norteador garantir que as leis promovam a justiça e a ordem, servindo ao propósito de criar uma sociedade mais justa e harmoniosa.
Em The Divine Code (Parte VIII, Cap. 1), o Rabino Moshe Weiner afirma que “os noaítas são obrigados dentro do seu mandamento de Dinim a criar leis justas e benéficas que sejam efetivas para todo o país, em todos os assuntos entre pessoas” e que esse material criado pelo legislativo deve servir “para que os tribunais administrem justiça de acordo com essas leis.”
Publicação das Leis
O Estado tem a obrigação de tornar suas leis conhecidas e acessíveis a todos os cidadãos. Isto inclui documentar as leis em linguagem clara, publicar o código legal completo e disponibilizar o acesso aos textos legais.
Este princípio encontra eco nas palavras de Moshê (Devarim 31.11-12), “Quando Israel inteiro vier se apresentar diante do Criador, seu Deus, no lugar que Ele escolher, esta Torá deve ser lida na presença de todo o Israel. Reúnam o povo, homens, mulheres, crianças e os estrangeiros em suas comunidades, para que ouçam e aprendam a temer o Criador, seu Deus, e a obedecer as palavras desta Torá”.
Educação Cívica
Além de publicar o código de leis, o Estado deve promover a educação cívica para garantir que os cidadãos compreendam os fundamentos do sistema legal, os princípios éticos que sustentam a legislação, seus direitos e responsabilidades, ensinando desde cedo como navegar pelo sistema judiciário.
Maimônides (Hilḥot Melaḥim 10.1) comenta que quando alguém é “considerado próximo de ter pecado intencionalmente, deve ser executado. Isso não é considerado uma violação inadvertida, pois ele deveria ter buscado aprender suas obrigações e não o fez”. Daqui se aprende que o estudo da lei é fundamental, incluindo responsabilidades tanto para o Estado em fornecer o ensino quanto para o cidadão em se esforçar para aprender.
Limitações do Poder Estatal
Conformidade com as Sete Leis
Toda legislação estatal deve estar em conformidade com os princípios fundamentais das Sete Leis, como o Rambam (Maimônides) detalha em Hilḥot Melaḥim 9, a autoridade do Estado é legitimada pela aderência às leis universais que o Criador ordenou a toda humanidade.
Proibição de Leis Opressivas
O Estado não pode promulgar leis que sejam naturalmente injustas ou desenhadas para oprimir populações específicas, muito menos contrárias aos princípios básicos de justiça e dignidade humana. Um sistema legal adequado deve equilibrar a necessidade de ordem social com o respeito pelas liberdades individuais fundamentais, enquanto a ausência desse equilíbrio leva inevitavelmente à tirania.
Estados laicos e as Sete Leis
A obrigação da lei de Dinim (Sistemas de Justiça) recai primariamente sobre o Estado como representante da sociedade organizada, embora esta responsabilidade vá além da mera criação de tribunais, englobando o estabelecimento de estruturas legislativas e executivas que promovam justiça, ordem e dignidade humana.
Como visto nas palavras dos sábios, o cumprimento adequado desta obrigação serve para transformar a natureza pessoal e também para trazer ordem e justiça para a sociedade. Mesmo os Estados laicos têm esse dever criar estruturas governamentais justas, pois as Sete Leis se aplicam para toda a humanidade, reconhecendo sua origem divina ou não.
Qualquer um que aceite os Sete Mandamentos e tenha cuidado em fazer isso é um justo entre as nações do mundo e tem uma parte no próximo mundo.
- Maimônides, Mishnê Torá